"Quando a conheci, em 2018, durante a exposição O feminino sombrio nas Harpias do século XXI, Fanny Feigenson, percebo hoje, fazia nova torção no imaginário feminino. Seu voo parece incansável. Se ela mesma se define arqueóloga, eu descreveria a presente obra, Ventania Solar, como uma arqueologia dos afetos. Realista, trágica, Fanny não cessa de aludir à ausência-presença de Tati – a filha para a qual, em momentos cruciais, cedeu a voz – na vertente mais pessoal de seu romance-arte que, integrativo, registra igualmente, com insistência, a memória impessoal, porém não menos sombria, da discriminação e do holocausto, a repercutir desde seus primeiros anos nos silêncios de sobreviventes tão próximos e, feliz ou infelizmente, tão dedicados a esquecer. Há de fato flutuações de tristeza e alegria no texto de Fanny, e ela chega a listar, de modo confessional, alguns afetos que chamaríamos de tristes, como o medo, a raiva, o ressentimento, a desconfiança, o abuso, a exclusão, a impotência, a fragilidade, mas submetendo-os todos, mediante sua escrita desprendida, à regência dos afetos originários, aqueles de leite e mel. Os “buracos do inconsciente”, ao darem vazão aos sentimentos ruins, ganham o aspecto sublimatório do gesto e da palavra: “o silêncio de toda uma geração que foi calada com assassinatos. Uma caligrafia que se torna imagem dessas lembranças”. Gesto e palavra juntam-se em grafias vitais. E, por certo, reúnem “os cacos da minha história”, como diz Fanny, “para me libertar dela”. Pois há igualmente leveza em sua arte, não importa quão terríveis sejam os elementos da memória, o Holocausto, a mãe violentada, a morte de Tati... A tonalidade aérea faz jus aos votos de Paul Klee de alçar-se da terra. Apesar de tudo, leveza: “Eu era uma antena com potência, captando energias anônimas”. O gesto, a palavra, a imagem levam a dor e a desolação a um plano único de desterritorialização contínua."

Depoimento de João Perci Schiavon